maio 06, 2006

DA SYRAH AO SHIRAZ
As duas grafias marcam a história desta uva tinta, originária da região do Rhône, mas que soube se adaptar, com maestria, aos terroirs do Novo e do Velho Mundo vinícola. Apesar da diferença fonética, é a mesma cepa, com seus taninos presentes e macios, mas com notas de degustação diversas. Na original francesa, ela é mais associada às especiarias; na versão consagrada pela Austrália, a cepa traz aromas de frutas mais maduras, com notas de chocolate.

Syrah ou Shiraz? Na França, ela é chamada de Syrah e dá origem aos grandes tintos da Côtes du Rhône. No Novo Mundo, ganhou uma grafia mais moderna:Shiraz, que é estampada nos rótulos de países tão diferentes como Austrália, África do Sul, Estados Unidos, Chile, Argentina e Brasil. Independentemente do nome, esta uva resulta num tinto escuro, bem estruturado, complexo e que agrada por seus taninos presentes, porém macios, e pelos aromas de frutas maduras, de especiarias e até de chocolate, couro e alcaçuz.

A diferença de nomenclatura não é apenas fonética, mas indicativa de um estilo de vinho e do respeito ao terroir. Mas se trata, sempre, da mesma cepa. Como Syrah, ela reina absoluta na região mais setentrional do Rhône, como Hermitage, Crozes-Hermitage, Côte-Rotie e Saint-Joseph. Seus vinhos Seus vinhos tendem a ser mais estruturados, e pedem um pouco mais de guarda: são tintos que demoram mais a abrir na taça e a revelar todas as suas (muitas) qualidades. E são poderosos.

O produtor Guigal é um dos campeões de nota 100 do crítico norte-americano Robert Parker e, claro, um fã da Syrah. “ela é a cepa ideal. Em sua infância, ela resulta em vinhos frutados, muito expressivos e elegantes. A Syrah pode evoluir lindamente, com a estrutura e textura de seus taninos”, afirma Philippe Gutgal, diretor-geral e enólogo do Domaine E. Gurgal.

No sul do Rhône, a Syrah divide os méritos com outras tintas, como Grenache, Mourvèdre, Marsanne e Cinsault, que fazem o sucesso do blend de mais de uma dezena de uvas do Châteauneuf-du-Pape

Já a Shiraz resulta em vinhos mais frutados, exuberantes, muito agradáveis de beber e que ficam prontos mais cedo – mas que mantém, como na sua origem francesa, a classe de envelhecer com maestria e encanto. Nestes terroirs, seus vinhos logo revelam a riqueza de aromas de frutas vermelhas, como framboesa (principalmente), toques florais, de chocolate e de especiarias – notas de pimenta preta, canela e até cravo os associam, freqüentemente, a tintos preferidos pelo público feminino. E mantém a cor escura, que lhe é característica – esta uva é rica em antocianos e, no passado, como Syrah, chegou a ser acrescentada nos vinhos de Bordeaux e Borgonha para torná-los mais encorpados e densos em cor. Não custa lembrar que, no século XIX, o Hermitage era o vinho mais caro e valorizado da França.

A dupla grafia faz parte da história desta uva desde meados do século XIX. Em 1832, como Syrah, ela embarcou da França rumo à Austrália pelas mãos do escocês James Busby, que mais tarde ficou conhecido como o pai da viticultura do país do canguru. O novo nome foi dado pelos australianos para a cepa que tão bem se adaptava ao seu terroir. Atualmente, ela é a uva oficial e estrela dos grandes tintos do país.

Sua expansão para novas fronteiras ganhou força a partir da década de 1970, seja nos países do novo mundo, como África do sul, e até na Itália e na própria França. Em Languedoc-Roussillon, no sul da França, por exemplo, ela chega a ser chamada de Shiraz, talvez para diferenciá-la dos tintos do Rhône. É uma cepa que também se adaptou aos climas mais quentes e até no brasileiro Vale do São Francisco. “Com as características únicas do paralelo 8, seus vinhos ganham aromas de frutas tropicais, como a goiaba, por exemplo”, afirma o enólogo Carlos Moura, presidente da ViniBrasil.

O gosto pelas viagens está até nas histórias de sua origem. Por muito tempo, imaginava-se que a Syrah tinha migrado da Pérsia (atualmente o Irã) para o Rhône pelas mãos de um cavaleiro medieval. Teria sido em pleno século 13, época das cruzadas. Outra hipótese apostava numa origem italiana da cepa; e seu nome seria associado à cidade de Siracusa. Estudos mais recentes, no entanto, comprovaram que a cepa provavelmente é autóctone do próprio Rhône, descendente de uma cepa da família vitis allobrogica, e que dá origem aos tintos da região desde os tempos do Império Romano. (por Suzana Barelli, publicado em Expand News, maio de 2006).

maio 01, 2006

O PARADOXO BRASILEIRO
O Cadastro Vinícola do Rio Grande do Sul, que mede as áreas de vinhedos comerciais do Estado, avaliou em 2005 35.263 hectares a superfície cultivada, da qual 6.955 ha (19,7%) de variedades viníferas1. Se levarmos em conta que o cultivo gaúcho corresponde a 90% do nacional, ficamos com um vinhedo de 39.181 hectares, bem diferente da cifra de 60.000 hectares informada pela OIV em 2001.

Já o consumo anual médio per capita de 2,71 l é o mesmo em todas as estatísticas, e em se mantendo a relação viníferas — não viníferas, o consumo médio anual de viníferas é de apenas meio litro per capita.

Concluindo, o brasileiro bebe pouco e mal. Se levarmos em conta que relativamente à cerveja esse consumo é de 50 litros (AmBev) e o de destilados estimado em 13 litros (não existem dados oficiais), nosso consumo de vinho é pífio.

Se levarmos em conta o grande número de pessoas, de empresas, de profissionais, de enófilos, publicitários, confrarias, associações, grupos de degustações, aspones, de empreendimentos e capitais direta e indiretamente ligados ao vinho, principalmente ao vinho fino, importado ou nacional, como explicar esse pequeno consumo?

Já explicar a presença majoritária das variedades americanas e híbridas entre nós, é mais fácil. Embora nossos primeiros colonizadores tenham trazido uvas viníferas no século XVI, nossa viticultura só se desenvolveu realmente na segunda metade do século XIX, a partir de 1870, com a chegada dos imigrantes italianos ao Rio Grande do Sul (principalmente do Vêneto e do Trentino — Alto Adige), que também trouxeram suas variedades viníferas. Ocorreu, entretanto, que algumas décadas antes, a partir de 1840, haviam chegado ao país algumas variedades americanas, como Isabel, Catawba, Concord, Martha, Delaware, entre outras, que se adaptaram muito bem ao novo habitat , eram resistentes às pragas (o que não ocorria com as viníferas) e ganharam a preferência dos vinicultores do Estado, preferência sensorial, gustativa e cultural, que perdura até nossos dias e que não cabe questionar.
Gosto é gosto e não se discute. Quando muito pode-se tentar educar. Como diz o título de uma recente publicação de sucesso, “Amar é Educar”…

Nosso paradoxo parece ser esse — uma geração se dedicando à melhoria do vinho e gerações de produtores e consumidores habituais, emocionalmente ligados ao vinho de garrafão.

Michel Rolland
Nesse contexto, aparece inesperadamente a figura emblemática de Michel Rolland, consagrado enólogo francês, consultor internacional de um grupo denominado “flying winemakers”, vinhateiros voadores. Rolland dá atualmente assessoria a mais de 100 vinícolas de 12 países.

Para muitos Michel Rolland seria o Ronaldinho do vinho e como tal foi contratado no início de 2004 por uma importante vinícola gaúcha para elaborarem conjuntamente três novos vinhos (um dos quais de uma variedade de Portugal), tarefa que o enólogo-voador desempenhou brilhantemente e da qual resultaram vinhos notáveis.

Foi quando ocorreu um fato inesperado, este de conseqüências maiores. Em entrevista à jornalista Bete Duarte, de Zero Hora de Porto Alegre, em 5 de junho (2004), Michel Rolland deu suas opiniões sobre o vinho brasileiro, opiniões coerentes de um conhecedor, que provocaram reações indignadas por parte principalmente dos diretores das associações corporativas do vinho nacional. O enólogo passou de Ronaldinho a um perna-de-pau da Segunda Divisão, lembrando-se aqui que o mesmo clube, que lançou Ronaldinho (o Grêmio de Porto Alegre), pouco tempo depois foi parar na Segunda Divisão…
Entre comentários pouco elogiosos, Rolland afirmou que o Brasil precisaria acabar com o vinho comum (de não viníferas), que prejudica a imagem do pais, chamando-o de “antivinho”.

As respostas às declarações não se fizeram esperar, pelas “barbaridades ditas por Rolland”, pela “falta de respeito para com os colegas brasileiros”, “pela postura arrogante e radical, de que sendo um consultor para vinhos finos dá opiniões sobre vinhos de mesa”, “que esse francês foi muito infeliz em suas colocações”, “que esse francês deve respeitar os usos e costumes do Brasil”, além do que “o consumidor é rei, ele dita as normas do mercado”2 e várias outras manifestações de revolta.

Um ano depois, em julho de 2005 volta Rolland ao mesmo Bon Vivant (ano 7, nº76, p.12-13) acompanhado pelo diretor da vinícola à qual dá consultoria, entrevistado por Andréia Debon. O “tom” agora é outro, cauteloso, político, sorridente e de chimarrão na mão… Afirma que, “todos têm que trabalhar para convencer ao mercado que seu vinho é melhor”, que “o Brasil tem potencial”, mesmo sabendo que “no Brasil… não há história suficiente… nas zonas vinícolas”. Evidentemente fez “média”, sem entrar agora em detalhes polêmicos.
Temos assim no país duas realidades vinícolas, opostas e inconciliáveis, a dos vinhos de viníferas e a majoritária, dos vinhos de uvas americanas e híbridas, as preferidas do consumidor patrício. Queremos crer que essa circunstância, como pensa Rolland, é incompatível com um vitivinicultura que pretende ser considerada e respeitada no mercado internacional.

Como dizia meu professor Jayme Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, da FMUSP, “a verdade é feia e tem cara de herege”.
Parece ser esse o nosso paradoxo, no qual cada um beberá o que quiser, ou talvez o que mereça.

Preferências – Nacha Guevara e discépolo
A propósito de preferências, gustativas ou não, ocorre-nos um lúcido comentário da cantora argentina Nacha Guevara, encaixado na gravação do antológico e profético tango Cambalache (1934), de Enrique Santos Discépolo (1901-1951), gravado ao vivo em Madri (La Vida em Tiempo de Tango, CD-8134, Espana 2000).
A certa altura Discépolo com seu humor satírico, pessimista e amargo, referindo-se a desagregação social de seu tempo diz que tanto faz ser honesto ou não, ignorante ou sábio, ao escrever:

“Tudo es igual, nada es mejor
Lo mismo un burro que um gran professor
No hay aplazados (reprovados) ni escalafón (relação de aprovados)”
Nesse ponto entra o comentário da intérprete:

“…parece-me que aí Discépolo se enganou, pois que na realidade hoje um burro é muito mais que um grande professor, além do que há muito mais burros que grandes professores. Portanto os burros são maioria e as maiorias mandam. Não é essa por acaso a democracia? Como diz o famoso provérbio indú: “Come merda, que centenas de milhares de milhões de moscas não podem estar equivocadas”.

O comentário é sem dúvida grosseiro, mas em matéria de preferências, cabe um raciocínio linear e lógico — não é por ser uma opção da maioria que temos que aceita-las.
Como bem diz Nacha, estamos em uma democracia em que a maioria manda. Ainda assim podemos comer e beber o que quisermos. Não somos moscas... (Por: Sérgio de Paula Santos - Jornal Bon Vivant - fevereiro 2006).